domingo, 5 de agosto de 2012

Injustiça histórica para não esquecer »Prefeitura de Araguari cria roteiro turístico e relembra os 75 anos do caso dos irmãos Naves. Eles foram condenados por assassinato de homem que não tinha morrido

Injustiça histórica para não esquecer »Prefeitura de Araguari cria roteiro turístico e relembra os 75 anos do caso dos irmãos Naves. Eles foram condenados por assassinato de homem que não tinha morrido

Paulo Henrique Lobato -
Publicação: 05/08/2012 07:07Atualização:
Araguari – A obra em ritmo acelerado no sobrado de número 1.098 da Rua Coronel José Ferreira Alves, em Araguari, transformará o centenário casarão num moderno teatro. Por ironia, o novo cartão-postal será palco de peça inspirada num drama que ocorreu no mesmo imóvel, antigo fórum e cadeia da cidade do Triângulo Mineiro. Foi ali que se desenrolou boa parte do chamado caso dos irmãos Naves, tido por muitos juristas como o maior erro do Judiciário brasileiro no século passado. Sebastião e Joaquim Naves foram torturados e injustamente condenados sob a acusação de ter roubado e matado o compadre deles, Benedito Pereira. A reforma do casarão e a encenação de peça fazem parte de roteiro turístico recém-criado pela prefeitura inspirado no caso. O enredo envolvendo os irmãos Naves começou em 1937 e só foi esclarecido em 1952, quando o compadre Benedito, que ficou 15 anos desaparecido, voltou ao município. Em alusão aos 75 anos do início do martírio dos réus e aos 60 anos do fim do sofrimento da família Naves, o Estado de Minas relembra o caso que entrou para a história jurídica brasileira e detalha os planos do município para que o erro não seja apagado da memória do país.

Enredo de dívidas, fuga e torturas
A data é 29 de novembro de 1937. Poucas semanas depois de Getúlio Vargas orquestrar o golpe que instituiu o Estado Novo, os irmãos Joaquim e Sebastião Naves, humildes e semianalfabetos, entraram afoitos na delegacia de Araguari para informar aos policiais que Benedito Pereira, compadre deles, havia desaparecido com pouco mais de 90 contos de réis – cerca de R$ 300 mil. O tenente Chico Vieira, conhecido tanto pelo rigor quanto pela farda impecável, foi transferido de Belo Horizonte para conduzir as investigações.

O delegado-militar ouviu dos irmãos que Benedito era sócio deles num caminhão Ford V-8, usado no transporte de grãos, e que havia conseguido empréstimo com familiares e amigos para comprar 2.047 sacas de arroz. O desejo do compadre era lucrar com a alta do produto, mas o preço do alimento despencou e Benedito foi obrigado a vendê-lo pelos 90 contos de réis. O valor era insuficiente para quitar os empréstimos. Talvez esse tenha sido o motivo de seu sumiço.

Para o tenente, porém, a linha de investigação foi uma só: os Naves cometeram latrocínio – matar para roubar – contra o compadre. “Os irmãos tiveram as unhas arrancadas, foram obrigados a beber urina e um deles, depois de pendurado numa árvore, teve o corpo lambuzado com mel para ser atacado por insetos. O pior foi terem visto a mãe e as esposas torturadas”, conta Fausto Lieggio, de 97 anos, filho de um carcereiro na época do martírio dos Naves.

Os descendentes de Sebastião e Joaquim não comentam o caso. Pudera: o sofrimento dos irmãos foi além dos maus-tratos físicos. O bebê de Sebastião morreu de desnutrição, segundo moradores, porque a mãe, depois de torturada, não teve como alimentá-lo corretamente. Por semanas, Sebastião e Joaquim ficaram presos numa cela no primeiro andar do sobrado que está sendo reformado.

Lá funcionava a cadeia. O segundo pavimento abrigava o fórum, onde eles foram julgados duas vezes. Em ambas foram inocentados por 6 a 1. Aqui entra o erro do Judiciário, que aceitou recurso do Ministério Público, discordou das decisões dos jurados e condenou os réus. O Brasil seguia a Constituição de 1937, que não garantia a soberania do júri.

“Era outra época. O crime de latrocínio era julgado pelo júri. Hoje, o tribunal pode até mudar a decisão dos jurados, numa revisão criminal, desde que ocorram fatos depois do julgamento”, esclarece o juiz Glauco Eduardo Soares, titular do 2º Tribunal do Júri de BH e ex-delegado em Araguari. Ele conhece a história não apenas por ter sido lotado na cidade: o drama dos Naves se tornou caso estudado nas faculdades de direito do país.

“O caso é um marco, tendo ‘virado’ livro e filme”, reforça o advogado Leonardo Marinho, conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) e professor de processo penal na PUC Minas e na Universidade Federal de Minas Gerais. O livro ao qual ele se refere, O caso dos irmãos Naves, foi escrito por João Alamy Filho, que defendeu Sebastião e Joaquim.

O bacharel conseguiu reduzir a pena dos irmãos de 25 anos para 16 anos. Por bom comportamento, em 1946, a dupla deixou a prisão depois de oito anos e seis meses dentro de uma cela. Joaquim, três anos depois, morreu. “Foi para o céu carregando a culpa de um crime que não cometeu”, lamentou a historiadora Juscelia Peixoto. Em 1952, a verdade foi esclarecida: Benedito apareceu numa fazenda próxima a Araguari. Sebastião foi avisado e acionou a polícia.

Benedito, depois de localizado, jurou que não sabia do martírio enfrentado pelos irmãos. Relatou que decidiu viajar pelo Brasil. O empréstimo que ele havia conseguido jamais foi pago. Já a honra dos Naves foi resgatada.

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