domingo, 29 de julho de 2012

Repórter do EM percorre mais de mil quilômetros rumo ao Oeste de Minas Inspirado na obra On the road, de Jack Kerouac, ele voltou com muitas histórias na bagagem

Repórter do EM percorre mais de mil quilômetros rumo ao Oeste de Minas Inspirado na obra On the road, de Jack Kerouac, ele voltou com muitas histórias na bagagem

Tiago de Holanda
Publicação: 29/07/2012 07:19 Atualização: 29/07/2012 07:27


No romance On The Road (na estrada, em tradução literal), do norte-americano Jack Kerouac, o jovem protagonista Sal Paradise narra as cinco intensas viagens que fez entre 1947 e 1950. Na primeira delas, partiu da cidade onde morava, Paterson, Nova Jersey, estado da costa Leste dos Estados Unidos, e cruzou o mapa até São Francisco, Califórnia, no extremo Oeste. Sal percorreu de carona a maior parte do trajeto. Desvendou o país natal e explorou a própria alma, ávido por novas paisagens, pessoas e sensações. Publicado em 1957, On The Road incitou gerações de jovens inquietos a saírem de casa com pouco dinheiro, mochila nas costas e o polegar apontando para o horizonte, à espera de um generoso motorista. Neste mês, Sal Paradise e suas andanças renasceram na tela do cinema, com o lançamento do longa-metragem Na estrada, baseado no romance e dirigido pelo brasileiro Walter Salles. Inspirado no livro e no filme, o Estado de Minas percorreu de carona parte do território mineiro e, assim como Sal, voltou cheio de boas histórias. A seguir, o relato do que o repórter encontrou em sua jornada de mais de mil quilômetros rumo ao Oeste mineiro.

1º dia - mochila nas costas e 333 km pela frente

Parti de Belo Horizonte na manhã do último dia 17, uma terça-feira, e retornei na tarde do dia 20, a sexta-feira seguinte. O objetivo era chegar ao Triângulo Mineiro. Na volta, depois de Patos de Minas, se desse tempo, subiria pela BR-365 até Pirapora, no Norte, de onde desceria à capital. Sempre de carona. No meio do caminho, imprevistos fizeram o roteiro ser alterado mais de uma vez. No primeiro dia, porém, o acaso só ajudou.

Para apanhar sua primeira carona, Sal foi de metrô e ônibus até os limites da cidade onde morava. Também eu procurei um “quase limite” da Região Metropolitana de BH: o carro da reportagem me deixou em Betim, no início da BR-262, no trevo em que ela se encontra com a BR-381. No primeiro dia, o objetivo era dormir em Araxá, distante 333 quilômetros. Às margens da 262, ergui timidamente o papel branco onde havia escrito “CARONA – NOVA SERRANA” em grandes letras pretas. Queria dar uma volta na cidade, famosa pela produção de calçados.

Em apenas cinco minutos um carro encostou. Corri e me debrucei na janela. “Vou até Pará de Minas”, anunciou o motorista. O médico homeopata André Moreira, de 33 anos, mora em BH. Um dia na semana, atende em hospital público de Pará de Minas. Costuma dar carona naquele trevo. “Sempre tem algum estudante pedindo”, explicou. Ele também já foi caroneiro, “mas era muito jovem”. No rádio, João Gilberto e Caetano Veloso. André dirigia de óculos escuros, o cotovelo apoiado na porta. Falava pouco, parecia curtir a calmaria dos últimos minutos sem jaleco.

O homeopata me deixou no trevo de acesso a Pará de Minas às 9h13, 28 minutos depois de me apanhar. A maioria dos motoristas que passava por ali me via e desviava o olhar, como muitos agem ao avistar mendigos. Alguns apontavam para a esquerda, avisando que pegariam retorno logo à frente. Pude ler os lábios de um caminhoneiro: “Não posso”.

Esperei 12 minutos até parar um Corsa preto. “Entra aí, parceiro”, convidou o sujeito. Um pen drive ligado ao aparelho de som deslizava o rock de Led Zeppelin e AC/DC. Hudson Soares, de 30 anos, havia sido policial militar em Belo Horizonte por 10 anos, mas conseguiu ser transferido para Pará de Minas. Ficou mais perto de Bom Despacho, onde moram seus pais. Era para lá que estava indo naquela terça-feira, seu primeiro dia de férias.

Hudson não costuma dar carona a desconhecidos, mas abriu uma exceção. “É perigoso, mas vi sua cara, você de mochila nas costas, segurando essa plaquinha. Isso é típico de estudante”, ele me olhou fixamente, como se perscrutasse minhas intenções. De vez em quando, é o policial quem pega carona. “Tem caminhoneiro que me vê com a farda e pergunta aonde tô indo. Pra ele, que viaja sozinho, é bom, né?”.

Araxá
Segui com Hudson até Bom Despacho. Ele me largou em um posto de combustível na 262, quase uma hora depois de me apanhar – dirigia sem pressa. Havia muitos caminhões estacionados. Pedi ajuda a um frentista. “Vai pra Araxá?”, ele perguntou a um caminhoneiro que acabava de pagar pelo diesel. O motorista concordou em me levar, só almoçaria antes.

Na cabine elevada daquele Scania G-380, sobre o painel, havia três bonés e um chapéu de palha. Anderson Mendes, de 24 anos, dirigia descalço. A fala misturava preguiça e timidez, mas os olhos verdes me encaravam com segurança. “A gente tá direto no posto, conhece o pessoal. Dou carona quando é assim: o frentista fala comigo. Até achei que você era conhecido dele.”

Na manhã anterior, carregado com trigo, Anderson havia saído de Astorga (PR), onde mora com os pais. Deixou a carga em Santa Luzia, na Grande BH, e dormiu ali mesmo, naquele posto. Ele puxou a cortina às suas costas para me mostrar a “cama”, um espaço estreito e acolchoado, com um aparelho de TV no alto. Em Araxá, ia pegar adubo, a ser descarregado em Sorriso (MT), de onde ia transportar soja. “Sempre faço esse trajeto”, explicou ele, que é filho de caminhoneiro e exerce o ofício há três anos. Entre uma viagem e outra, fica três ou quatro dias em casa.

Chegamos a Araxá às 15h35 e estacionamos em um posto na Avenida Ministro Olavo Drumond. “Não sei se você vai conseguir carona a essa hora. O trecho daqui pra Uberaba ou Uberlândia é perigoso. Vai chegar lá escurecendo”, alertou Anderson. O rapaz da lanchonete me explicou como chegar ao Centro e fui embora. Estava frio. Subi as ladeiras do subúrbio, passei pela Igreja Matriz de São Domingos e cheguei à Avenida Antônio Carlos. Virei à direita e, em um museu, arrumei o mapa da cidade e telefones de hotéis. Liguei para um monte deles. Fui para o mais barato.

O hotel fica no final da Avenida Vereador João Sena, pouco antes da curva para a Rodoviária. Entrei por uma portinha, subi alguns degraus e não achei ninguém. Toquei uma campainha e nada. Desci uma escada à esquerda e cheguei à garagem-refeitório, onde me deram a chave do quarto 14. Duas camas e uma cadeira branca de metal meio enferrujado, dessas de bar, dobrável e com uma marca de cerveja no encosto. Não havia banheiro, ventilador, nem cortinas. Paguei R$ 25 pela diária e descansei um pouco.

Andei por toda a Avenida Imbiara, principal ponto de diversão da cidade. Naquela noite de terça-feira, porém, havia pouca gente. No bar mais animado, que cobrava ingresso, vi belas garotas maquiadas e com botas, e supus que fosse mais uma balada sertaneja. Ali perto, havia um boteco estreito e comprido, com mesas e cadeiras de plástico. Fui ao balcão no fundo, atrás do qual não havia ninguém. A conversa se interrompeu na mesa ao lado e um dos homens ficou me encarando. “É o quê?”, ele me perguntou, a voz mansa. “Posso ver o cardápio?”, retruquei. “Cardápio não tem”, respondeu. E, sem se levantar, foi me dizendo o que havia para comer. Pedi uma cerveja e me sentei.

Começou a tocar Jota Quest e, na mesa diante da minha, um homem se empolgou: Hojeeee, só sua presença vai me deixar feliiiiz. Só hojeeeee. Puxei conversa. Ele me disse que era conhecido como Carioca. “Se você disser meu nome, ninguém vai saber quem é.” É carpinteiro de uma construtora. Tem “50 anos nas costas” e morava em Volta Redonda (RJ) antes de ir para BH, onde ficou por quatro anos até se mudar para Araxá, há cinco meses.

Na capital mineira, Carioca morava com uma mulher, que passou a encontrar a cada 30 dias. Em Araxá, sai com uma “pequena”. “Minha namorada não sabe, mas ela não é boba, sabe que me divirto aqui.” E a mulher, também se diverte por lá? “Eu sei que ela não tem outro”, arrisca. Depois se emenda: “Acredito que não tem. Se eu fosse ficar pensando nisso, nem saía de casa”. Ele explica que, com a mulher de BH, o relacionamento é “jogo aberto”.

Carioca confirma que a Imbiara é o pedaço mais movimentado da cidade, mas o negócio esquenta mesmo entre quinta-feira e sábado. As mulheres não têm frescura. “Você tem que chegar com jeito, não pode atropelar. Não sou boa pinta, mas sei conversar”, ensina. “Outro dia, fiquei com uma por causa de um real”. Ele estava por ali, assim, e viu duas amigas tentando comprar cerveja. Faltava apenas R$ 1. Ele ouviu e se ofereceu para pagar. Começaram a bater papo e pronto.

“Vou cair fora, que amanhã é dia de índio”, encerrou Carioca. Antes da meia-noite, quase todos os bares estavam fechados ou recolhiam as mesas. A Antonio Carlos estava deserta. A rua do hotel, também, a não ser pelos retardatários de um boteco, uns caras em um ponto de mototáxi e um travesti com um vestidinho colado, em uma esquina. Invejei Sal Paradise e suas noites em Denver e São Francisco.

2º dia - horas de castigo antes do ‘eldorado’


Acabei dormindo mais do que devia. O melhor horário para pegar carona é de manhã cedo, quando os caminhoneiros começam a zarpar e muitos comerciantes e empregados de firmas viajam sozinhos. Não consegui encontrar o posto onde desci em Araxá. Andei por uma hora e meia, vergado pela pesada mochila, até encontrar o trevo de acesso a Uberaba e Uberlândia.

Como estava tarde – eram mais de 11h – e pretendia dormir em Uberlândia, decidi ir para lá direto. Anotei meu destino em um papel e fiquei de pé no início da BR-452. Esperei por 25 minutos até parar um Corsa preto. “Quer ir pra Perdizes?”, ofereceu o motorista. “Lá é bom de pegar carona?”, perguntei. “É, sim. No trevo”, garantiu. Alguns quilômetros a menos, pensei. Não desconfiava que aquela seria a carona mais furada de toda a viagem.

O carro transportava uma família. O motorista era Alexandre Eurípedes da Silva, caminhoneiro, 32 anos. A seu lado, a esposa, Éldia Rodrigues Ferreira, de 34, que trabalha na roça. Apertei-me no banco traseiro, ao lado da empregada doméstica Sandra Maria da Silva, de 50 anos, mãe de Alexandre. Na ponta de lá, estava Vera Lúcia, de 9, filha de Éldia e enteada de Alexandre. Os quatro haviam ido a Araxá para resolver algo em uma agência do Itaú. “Em Perdizes, só tem Banco do Brasil e Bradesco”, explicou Sandra. Aproveitaram para se divertir em um balneário.

O Corsa roncava, cansado. O parabrisa exibia longas cicatrizes. Não havia retrovisor interno. De vez em quando, o motorista mexia na cruz de um rosário dependurado no quebra-sol. Paramos em um posto. Alexandre pegou uma mangueira e um esfregão, que molhava em um barril com uma mistura de água e sabão. Foi a lavagem mais rápida de um carro que já vi. Ao longo da estrada, vastas planícies cultivadas com cana e milho, bois e vacas pastando. “Deus vai fazer você chegar logo ao seu destino”, despediu-se Sandra. Fui deixado no trevo de Perdizes às 12h30.

Lá encontrei dois caroneiros, Miguel Lopes, de 29 anos, e a sobrinha Marley de Souza, de 24. Havia dois anos, moravam e trabalhavam em uma fazenda de Araxá. Dividiam o lote e a casa com cinco parentes. “Viemos pagar contas e comprar”, Marley mostrou sacolas com fraldas, frango e outros produtos. Sempre que precisam ir a Perdizes, pegam caronas na ida e na volta. “É que o ônibus sai de Araxá muito cedo, antes das 6h, e outro sai daqui para Araxá só às 17h”, explicou a moça.

Paciência Pouco depois das 6h daquela quarta-feira, saíram da fazenda, foram até a rodovia e pegaram carona em um caminhão-tanque abastecido com leite. Outra carona os levou da sede de Perdizes até aquele trevo. “Antes nós era besta e atravessava a pista (diante do trevo) pra pegar lá do outro lado, ninguém parava”, gargalha Marley. Miguel apenas sorri, envergonhado. “Ele fala que mulher é que tem que pedir, que o motorista fica com dó. Mas não adianta”, brinca Marley.

Sempre que passa um carro, Miguel levanta o dedão, tímido. Normalmente, repete o gesto por mais ou menos uma hora, mas conta que já ficou três horas esperando. Para ajudá-los, anotei “CARONA – ARAXÁ” em um papel e lhes disse que, assim, seria mais fácil. Marley segurou a plaquinha por menos de cinco minutos até um carro de passeio apanhá-los. Acenaram para mim e sumiram.

Não tive a mesma sorte. Segurei minha placa grafada com “CARONA - UBERLÂNDIA” das 12h50 às 13h53. Quando não me ignoravam, os motoristas apontavam para a direita ou para a esquerda. Decidi dar meia volta e tentar uma carona para dentro de Perdizes pela BR-462. Às 14h15, um vendedor de panelas me deixou na Rodoviária. Torceu a cara quando lhe falei de meu fracasso. “Que coisa! Em trevo de cidade pequena costuma ser fácil o pessoal parar”, comentou.

Não havia ninguém no balcão da empresa de ônibus que faz o trecho até Uberlândia. Disseram que a moça voltaria logo e o ônibus, o último para lá, sairia às 15h. Não tinha comido nada  e me decepcionei ao ver as opções na mais assustadora lanchonete que já enfrentei. Uns poucos salgados pareciam estar ali havia dias. O atendente ofereceu-se para preparar novos e, assim, um enroladinho semicru de presunto e queijo foi minha primeira refeição.

O ônibus – R$ 31,45 a menos no bolso – saiu às 15h30 e entrou em todas as cidades que margeiam a 452. Desembarquei às 18h, cansado e animado com as luzes e largas avenidas da rica Uberlândia. Tomei um ônibus para o terminal central, caminhei um pouco e me hospedei em um gracioso hotel na Avenida Coronel Antonio Alves. Paguei R$ 50 por um quarto minúsculo com banheiro.

“Em Uberlândia, tem dinheiro rolando na rua”, disse um conhecido meu, que mora lá e foi meu guia aquela noite, em seu Meriva. Ele me entregou um exemplar de uma revista de agronegócio da qual é sócio. Contou que, há pouco tempo, abriu uma agência de comunicação. Um dos novos clientes, lisonjeou-se, é um dos maiores criadores de gado da região. O rapaz parecia ansioso por entrar na high society local. “Eu tinha preconceito com o agronegócio. Só ouvia rock. Hoje danço sertanejo, se precisar”, sorriu ele, que usava botas de couro e camisa xadrez.

Perambulamos um pouco. Disse que queria me apresentar a melhor parte da cidade. Começamos a rodar pelo Bairro Morada da Colina. As mansões pareciam fortalezas, resguardadas por muros de mais de três metros de altura e cercas eletrificadas. Algumas tinham câmeras e guaritas. “Eu sempre quis saber quem mora aí”, apontou uma construção que deixava ver colunas à grega. No Bairro Jardim Caraíba, não havia muros, apenas quintais gramados ao estilo norte-americano. “Os carrões dormem do lado de fora e ninguém mexe”, constatou.

Depois, voltamos ao Centro, com vida noturna mais movimentada. Entramos em um bar-boate. Os jovens se agrupavam em torno de mesinhas. Só se vendia cerveja importada, mas o pessoal preferia beber energético com Red Label ou Absolut. Uma banda começou a tocar pagode e sertanejo. “Você também não gosta, né?”, me perguntou um rapaz, referindo-se à música. “Faz como eu: finja”, brincou. Sorri de volta e, pouco tempo depois, corri para o hotel.

3º dia - caminhoneiro também anda de carona

Na manhã seguinte, fui de ônibus à estação de Santa Luzia e tomei um mototáxi até a saída para Patos de Minas, na BR-365. Lá, um rapaz já erguia um papel com o destino “PATOS”. Gustavo (que me pediu para omitir o sobrenome) seria minha companhia em três caronas e 287 quilômetros.

Gustavo mora no Bairro Aparecida com a mãe, a namorada dele e o filho de sete meses. Há cinco, o rapaz de 18 anos aceitou o convite do pai caminhoneiro para acompanhá-lo em suas viagens ao Norte do país. O pai dirige durante o dia e Gustavo, à noite. O jovem, que não tem carteira de habilitação específica para caminhões, pega o volante por volta das 20h e roda até as 6h. “Nesse horário, principalmente de madrugada, a fiscalização é fraca. Trabalho na ilegalidade”, admite.

O caminhão quase não para. “Não dá pra perder tempo. A gente tem 40 horas pra ir de São Gotardo a Belém (PA), por exemplo”, ressalta ele, mencionando um percurso de 2.500 quilômetros. Antes de dividir a tarefa com o rapaz, seu pai precisava usar estimulante. “Você só consegue ir sozinho com cocaína ou ‘rebite’”, conta.

Encontro Depois de buscar verdura em São Gotardo ou Cristalina (GO), o pai do rapaz segue para Recife (PE), Fortaleza (CE) ou Belém (PA). Gustavo tem que dar um jeito de encontrá-lo no meio do caminho. Para isso, sempre vai de carona. “Não gasto dinheiro com ônibus. Ganho pouco e tenho um menino”, justifica. Quando o caminhão é carregado em São Gotardo, como nesta vez, o rapaz vai a Patos de Minas e desce para Rio Paranaíba, onde fica em um posto na BR-354, à espera do caminhão.

Naquela quinta-feira, o combinado era Gustavo estar no posto até as 18h. Geralmente, começa a pegar carona cedo, por volta das 6h30. Nesse dia, porém, chegou atrasado, umas 9h45. “Agora, os carros passam tudo cheio, família viajando. Época de férias, né? Caminhoneiro é difícil, mais desconfiado, às vezes o caminhão é rastreado”, explica. “Quanto menor a cidade, mais fácil pegar carona. O cara acha que você é da região. Em BH, deve ser difícil. Tem muita criminalidade, o povo fica com medo.”

Ele me mostrou o papel com a inscrição “PATOS”. “Você põe ‘estudante’ numa plaquinha dessa e pega (carona) facinho”, contou. Para testar sua tese, escrevi “PATOS – ESTUDANTE” em um papel e desenhei uma carinha sorridente – assim, ele garantiu, ficava mais comovente. Começamos a usar a nova placa às 10h43. Nos revezávamos à beira da pista, o sol assando nossas cabeças. Em seus minutos de folga, Gustavo fumava um cigarro atrás do outro.

Uns 20 minutos depois, uma mulher desceu de uma moto e caminhou em nossa direção. Gustavo avisou: “Agora, você vai ver o que é pegar carona rapidinho. Caminhoneiro dá carona a mulher pra comer ela, mas com essa aí tem que ter muita força de vontade.” A mulher parecia ter uns 40 anos, um tanto acima do peso, o cabelo descolorido. “Vou mais pra frente, pra não atrapalhar vocês”, disse ela ao passar, um meio sorriso. Parou, aprumou o dedão e, em menos de dez minutos, um caminhão a apanhou. “Se eu tivesse uma... no meio das pernas, já teria ido”, riu Gustavo.

Outro rapaz chegou à rodovia, mochila nas costas e uma mala amarela na mão. Pegou carona em 20 minutos. Não era nosso dia de sorte. Às 12h50, quase três horas após eu atracar ali, um cara se condoeu de nós. Dirigia um Hyundai IX35, carro de luxo, do tipo que não costuma acomodar caroneiros. O motorista anunciou que ia até Patrocínio e embarcamos.

José Geraldo Queiroz, de 50 anos, é corretor de seguros. Havia deixado a filha no aeroporto de Uberlândia e voltava para a cidade onde mora. “Sei o que é isso, já peguei muita carona”, falou quando entramos. Com 20 e poucos anos, estudante de administração em Goiânia (GO), ia de carona visitar a família em Patrocínio. “Preferia guardar a grana pra tomar uma, fazer festa. Às vezes, estava duro mesmo”, recordou. “Já fiquei seis horas esperando.”

Alívio estranho Atravessamos densas plantações de eucalipto, paredões às margens da estrada. “Vocês devem estar com fome”, Geraldo comentou, oferecendo uma maçã. Perguntou o que fazíamos da vida. Gustavo disse que era caminhoneiro e, como se falasse algo banal, explicou como ele e o pai fazem xixi sem precisar estacionar: levam uma garrafa plástica de dois litros cortada ao meio, põem o veículo no piloto automático e se aliviam. “Sempre na subida, que o caminhão vai mais devagar e o xixi não espirra na carroceria quando a gente joga pela janela”, ensinou.

Passava das duas da tarde quando fomos deixados em um posto, ao lado do trevo de acesso a Patrocínio. Uma mulher chegou à BR e, em uma descida, onde ninguém frearia para marmanjos como nós, um caminhão encostou em menos de cinco minutos. No trevo, como passavam lentamente, alguns motoristas gritavam aonde iam: Piracicaba, Guimarânia... Outros apontavam para a esquerda, como se fossem tomar o retorno, e seguiam em direção a Patos. “Que putão, sô! Vai tomar no lugar que não toma sol”, xingou Gustavo.

Um caminhão Mercedes-Benz nos apanhou às 15h. Geraldo Martins, de 64 anos, voltava à fazenda onde trabalha, em Patos de Mias, depois de descarregar café em Patrocínio. “O patrão não gosta que eu dê (carona), mas... É mais quando tem cara de estuda
nte”, explicou o motorista, que usava chapéu de palha, um casaco cheio de buracos e uma calça azul desbotada e puída. O caminhão não tinha cinto de segurança. Pelo telefone, Gustavo soube que poderia chegar a Rio Paranaíba até as 19h, uma hora a mais que o prazo anterior, e ficou aliviado.

Chegamos a Patos às 15h50. Minha ideia era dormir na cidade, mas Gustavo me convenceu a seguir viagem até um  posto na BR-354. “Lá tem hotel, você pode passar a noite. Muito caminhoneiro dorme lá, bebe, conta história. Seria uma experiência interessante”, justificou. Descemos o trevo e pegamos carona com Aderaldo Lima, de 40 anos. Ele é sócio de uma concessionária em Patos e ia entregar a Captiva em que viajava ao comprador, em Carmo do Paranaíba.

“Peguei muita carona quando cursava agronomia em Bambuí”, contou Aderaldo, de Salvador (BA). “Só dou carona em Minas. Em São Paulo ou Goiás, não. Tem bandido demais.” No trevo de acesso a Carmo, Gustavo pegou carona 10 minutos antes de mim. Levado por um vendedor de frutas ao posto pretendido, descobri que não havia hotel. À noite, o carro de uma firma me carregou de volta a Patos.

No primeiro hotel que encontrei, ao lado da rodoviária, paguei R$ 22 por um quarto com cheiro esquisito. No primeiro andar, o banheiro reservado aos hóspedes do sexo masculino tinha manchas arroxeadas na pia e no piso. Mas eu não tinha fôlego para procurar outro pouso. Desabei na cama.

Precisava chegar a BH naquela sexta-feira. Acordei cedo e me mandei para o trevo de Patos. Sem plaquinha, só com o polegar apontando o caminho, dois homens já pediam carona à beira da
BR-354. Um deles era Nilson dos Santos, de 40 anos — os sulcos profundos no rosto sugeriam mais idade. Vestia roupa social, sapatos pretos bem engraxados. Pegava carona porque o ônibus para Carmo do Paranaíba saía tarde. Voltava para a fazenda onde cria gado leiteiro. “Tenho 100 cabeças lá”, informou.

Quando um automóvel se aproximava, Nilson tirava a mão do bolso e levantava o dedão, discretamente. Por sua vez, a mão de Sandra Maria Borges vibrava no ar com insistência. A empregada doméstica de 44 anos surgiu na rodovia com a sobrinha, a auxiliar de serviços gerais Eliene Cristina Borges, de 26. Há 10 dias, as duas haviam ido visitar familiares em Pires do Rio (GO). De lá, pegaram três ônibus até Patos. E agora, como fazem sempre, esperavam carona de volta a Carmo do Paranaíba, onde moram. As duas carregavam um monte de malas e sacolas.

Nilson e eu nos apertamos na cabine do Mercedes que encostou às 8h50, 20 minutos depois de eu erguer minha plaquinha. Clovis Silvestre tem 50 anos e é caminhoneiro há mais de 30. No caminhão “boiadeiro”, com um gaiolão para transportar animais, saiu de um haras em Uberlândia carregando uma vaca e um bezerro, que deixou em Brazlândia (DF). Voltava vazio para Carmo. Os cintos de segurança não tinham encaixe. “Esse cinto, você senta em cima dele”, disse Clovis, ensinando o disfarce.

O caminhoneiro contou que já tomou muito “rebite”. Quem transporta “carga de horário”, com prazo de entrega curto, “só dá conta tomando rebite ou usando droga, cocaína”, justificou. Pensei em Gustavo e tentei imaginar onde ele e o pai estariam àquela hora. “Tem motorista que só anda à base de droga, o cara se vicia. Com rebite, a gente fica tão ligado que pega o volante assim, ó: firme. Não dorme. Eu tinha que tomar umas cervejas pra cortar o efeito e dormir”, relatou. Como o estimulante tirava a fome, a bebida maltratava o estômago vazio. “No outro dia, eu passava mal, vomitava.”

Em Carmo, 45 minutos depois de eu chegar, uma D-20 parou na saída do trevo. Enquanto um homem descia, fiquei apontando minha plaquinha para o motorista, que me ignorou por alguns instantes. Parecia indeciso. Baixou o vidro da janela e, sorrindo, perguntou: “Fuma não, né?” Quando entrei, reforçou: “Não ‘guento’ mau cheiro de cigarro”. Sinval José Honório, de 64 anos, disse que entregaria queijo canastra a comerciantes da Grande BH.

O homem que desceu da D-20 era um conhecido de Sinval que havia pedido carona até o trevo. “Como parei, fiquei constrangido a lhe dar alguma satisfação. Se não precisasse parar, é provável que passasse direto. Hoje em dia não tá fácil arriscar”, explicou o motorista. De qualquer forma, avaliou que eu não tinha cara de gente mal intencionada. “Bandido não fica em trevo perto de cidade, onde passa muita gente, muito carro, polícia”, ressaltou.

As planícies ocupadas com cana e café se sucederam. A paisagem mudou quando começamos a descer a Serra da Canastra. “Você vota em que partido? PT, PSDB, DEM…?”, perguntou Sinval. “A vida toda eu votei no PFL, o DEM. Não é do seu tempo, mas pra mim só existem dois partidos: UDN e PSD. Sempre fui da UDN. Na época da ditadura, não tinha tanto desvio de dinheiro.” Às 13h29, me deixou em Betim, em um ponto de ônibus na BR-381. Despediu-se: “Até! Foi um prazerão”.

O carro do jornal me apanhou pouco depois. Em quatro dias, percorri mais de mil quilômetros, conheci quase 30 pessoas de diferentes origens, idades e formações. No começo, era difícil levantar o dedão ou a plaquinha, e torcer para o motorista me considerar inofensivo. Andar de favor em automóveis de desconhecidos me deixava meio constrangido. Hoje, se alguém me disser que costuma dar carona, direi como Sal Paradise: “Eu faria o mesmo, se tivesse carro”. No trajeto de Betim a BH, não avistei ninguém pedindo carona. Gustavo deve ter razão: o povo fica com medo.

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