domingo, 15 de julho de 2012

Equilíbrio precário: os desafios do futuro em Ouro Preto


Equilíbrio precário: os desafios do futuro em Ouro PretoEm Ouro Preto, moradores dividem espaço com turistas e estudantes e tentam conciliar vantagens e desvantagens de se viver em uma cidade colonial.Parte da população comemora o crescimento do turismo por conta do Centro Histórico preservado, mas há quem sequer conheça monumentos do município

Publicação: 15/07/2012 07:12 Atualização: 15/07/2012 07:18

Praça Tiradentes, cartão-postal de Ouro Preto: onde moradores e turistas se encontram (gladyston rodrigues/em/d.a press)
Praça Tiradentes, cartão-postal de Ouro Preto: onde moradores e turistas se encontram

Pouco depois das 18h, dona Efigênia é a primeira a chegar quando se abrem as portas pesadas da Igreja de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto. Senta-se na segunda fileira, o terço nas mãos. Reza, mas os olhos inquietos vistoriam o trabalho do coroinha, que arruma o altar para a missa daquela noite de domingo. A beata se levanta, sobe os degraus e se curva para alinhar os banquinhos diante da mesa do altar: estão alguns centímetros fora do lugar. O coroinha sorri quando ela resmunga algo e volta a sentar-se. A idosa teme que, sem vigilância, os centímetros errados se multipliquem em metros.

Como de hábito, numa manhã de sexta-feira, Luzia Pedro de Alcântara anda com passos lentos pelas ruas da cidade histórica, a câmera fotográfica pendurada no pescoço. Luzia, de 64 anos, parece turista, mas nasceu e sempre morou na cidade. Nas horas de ócio, os olhos inquietos gostam de perscrutar o casario erguido no século 18. Se perceber nas fachadas qualquer desvio à arquitetura original, ela fotografa e manda o registro para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que em 1938 tombou construções e uma parte do território do município. “Sou meio dedo-duro. Acho um crime querer ser moderno e destruir uma parte de nossa história”, explica.
Em 1938, quando publicou o Guia de Ouro Preto, o pernambucano Manuel Bandeira se referiu à cidade, situada a 98 quilômetros de Belo Horizonte, como aquela que “não mudou, e nisso reside seu incomparável encanto”. Ali, escreveu o poeta, os “raríssimos” prédios novos “enfeiam pelo contraste chocante com o resto da edificação”. Nas décadas seguintes, a paisagem se transformou, a população cresceu, mas o calendário continuou a avançar cheio de cuidados. Visitantes se deparam com “relíquia inapreciável do nosso passado”, nas palavras de Bandeira, mas muitos moradores gostariam de viver um pouco mais no presente.

O território tombado de Ouro Preto, a “relíquia” admirada por Bandeira, foi delimitado por técnicos do Iphan em 1986. “Partindo-se da capela de São João, situada na Serra de Ouro Preto, vai-se em linha reta até o topo do morro situado à direita de quem olha a frontaria da Capela do Bom Jesus do Taquaral” – e as divisas seguem sendo assim descritas, abrangendo mais da metade da área urbana da sede do município. Na Portaria 312, de 2010, o Iphan lista os 47 monumentos tombados individualmente, como igrejas, capelas, chafarizes, passos e pontes.

Vila Rica
O núcleo histórico conserva, em grande parte, a feição que tomou no final do século 18, após a derrocada da exploração de ouro, minério que rendeu à cidade o nome original de Vila Rica. As ruas ainda são “muito estreitas e desniveladas” e “sobem e descem com tal inclinação”, que é “extremamente penoso ter de percorrê-las a pé”. Foi o que anotou o alemão Hermann Burmeister, quando esteve na cidade em 1851. Ainda é possível seguir o roteiro percorrido por ele e relatado em um dos capítulos do livro Viagem ao Brasil.

O antigo “largo do Palácio”, atual Praça Tiradentes, continua a ser demarcado, ao sul, pela imponente Casa da Câmara e da Cadeia – convertida no Museu da Inconfidência – e, ao norte, pelo Palácio dos Governadores. A oeste da praça sai a Rua das Flores, que passa pelo antigo Quartel Militar avistado por Burmeister — prédio que passou a abrigar a Escola Estadual Dom Pedro II. A rua “conduz a uma pequena praça”, onde “há um belo chafariz”, ainda existente. Ao lado do rio que corre sob a ponte “está a Contadoria ou Caixa Principal” atual museu Casa dos Contos.

“Mais adiante”, na Rua São José, observou o alemão, “havia diversas lojas, reinando ali muita vida e animação”. Quase um século depois, Bandeira andou por lá e a rua continuava sendo a “mais animada”, com os “melhores cafés e confeitarias, as principais casas de comércio”. E, hoje, mantém-se o mais movimentado corredor de venda e troca de mercadorias, com restaurantes, sapatarias, lojas de roupa e outros produtos, além das agências bancárias.

Paquera
Era na São José, entre a esquina do longevo Hotel Toffolo e o Largo da Alegria (atual Praça Silviano Brandão), que, até a década de 1970, ocorria o footing. No fim de semana, à noite, como também era hábito em outras cidades do estado, os rapazes ficavam nos passeios paquerando as moças que desfilavam de um lado para o outro. Apesar do irregular calçamento de pedras que ainda dificulta a caminhada, as jovens se equilibravam em saltos altos. Elas não podiam sair de casa desacompanhadas e os pais exigiam que voltassem até as 22h. “Os moços da cidade ficavam com raiva porque a gente só namorava os de fora”, lembra a aposentada Valéria Toffolo, de 56 anos, neta do fundador do hotel.

Os “de fora” eram universitários que chegavam para estudar na Escola de Farmácia, criada em 1839, e na Escola de Minas, inaugurada em 1876, instituições incorporadas em 1969 à Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Já lotavam as repúblicas — hoje, 58 delas se espalham pela cidade. Naquela época, quase todas as moradias eram exclusivamente masculinas. Os rapazes reclamavam do marasmo local com canções bem-humoradas. Valéria e a irmã Martha Toffolo, de 53, recordam, risonhas, uma das paródias:

“Meu pai um dia me chamou pra conversar: ‘Oh, meu filho, você vai pra Ouro Preto estudar’. ‘Oh, meu pai, que sacanagem que o senhor foi me arrumar’. Ouro Preto, Ouro Preto, depois que aqui cheguei, comecei a andar pra trás, nem comer não como mais. Ouro Preto, Ouro Preto, eu aqui não volto mais.”

Assim como antigamente, as repúblicas organizam festas com frequência, nem que seja de improviso, com música e algumas latas de cerveja. Porém, estudantes continuam reclamando da modorra da “cidade que não mudou”. “Aqui é muito estático, não quero ficar aqui depois que me formar. Acho bonito, mas você vem, visita, passa um tempo e pronto”, diz Priscila Clavé, de 22, estudante de jornalismo oriunda de Manaus (AM) e moradora da república feminina Snoopy.

Por outro lado, “a vida é muito intensa nas repúblicas”, considera Marina Rocha, de 23, graduanda de arquitetura vinda de Itajubá, Sul de Minas. Na Snoopy, como em tantas outras moradias estudantis, domingo costuma ser dia de ressaca. As moças começam a acordar lá para as 14h e terminam de se recuperar na sala de estar, deitadas no sofá ou em colchonetes, vendo televisão. “Em Ouro Preto, é muito comum universitários demorarem a se formar, não conseguem conciliar o estudo e o rock”, constata Marina. “Rock” é como eles chamam todo tipo de farra, curtida ou não ao som do rock’n’roll.

“Às vezes, a imagem que os nativos fazem de nós é ruim: somos vistos como pessoas que chegam, fazem bagunça e vão embora”, reconhece Adnam de Oliveira, de 26, estudante de administração. Ele mora na UPA (Unidos Por Acaso), república situada em um bairro fora do território tombado, a Bauxita, onde fica o câmpus da Ufop. Por causa da perturbação à vizinhança, a república já teve que pagar uma multa de R$ 3,6 mil e outra de R$ 1,8 mil.

 “As repúblicas fazem muito barulho, perturbam muito. Com a expansão da Ufop (que aumentou o número de estudantes), a coisa piorou”, reclama a comerciante Maria Aparecida Zurla, de 63, proprietária de duas lojas de cachaça no Centro da cidade. Outros comerciantes louvam a ruidosa clientela. “A maior parte do comércio depende dos universitários. Sem eles, Ouro Preto não teria quase nada”, acredita Francisco Laurindo Teixeira, de 79, conhecido como Seu Chico, dono de uma mercearia no Centro. Nas greves, quando muitos universitários aproveitam para visitar as cidades natais, o faturamento da mercearia cai 50%, “no mínimo”, diz Seu Chico. “Nos últimos dois anos, com a expansão da Ufop, as vendas cresceram uns 20%”, comemora.

Bares
Ganhamos um quarto do faturamento nesse mês. Esperamos o ano inteiro para que ele chegue - Peter Bosze, de 56 anos, dono de restaurante na Rua Direita (gladyston rodrigues/em/d.a press)
Ganhamos um quarto do faturamento nesse mês. Esperamos o ano inteiro para que ele chegue - Peter Bosze, de 56 anos, dono de restaurante na Rua Direita
Além das festas privadas, os estudantes se divertem em bares do Centro Histórico. O principal ponto de encontro é o Barroco, na Rua Direita – que quase ninguém conhece pelo nome oficial, Rua Conde de Bobadela. Nos fins de semana, o bar fica agitado até alta madrugada, abarrotado de gente. Ninguém se incomoda de ter de beber na calçada, de pé. Carros com som alto, quase sempre tocando funk, sobem a rua o tempo todo. Em grupos, moradores também se divertem por ali. 

Outros jovens preferem beber, conversar e namorar em volta do monumento que homenageia Tiradentes, na praça que tem o nome do mártir, onde desemboca a Rua Direita. Alguns gostam de se reunir em escadarias de igrejas, como a do Pilar, a predileta da turma do ouro-pretano Henry Freitas, de 19, que está fazendo cursinho pré-vestibular para ingressar na Ufop. “Aqui não tem o que fazer, pra onde sair. Não surge nada de novo, é um lugar muito preso ao passado”, lamenta. “Aqui é barzinho, mais nada”, concorda a amiga Júlia Guedes, de 15, estudante do 1º ano do ensino médio. “As festas boas rolam nas repúblicas. Não fossem eles (os universitários), Ouro Preto seria uma roça como qualquer outra”, aponta Henry.

Em uma noite de domingo, quando a cidade parece ficar em stand-by, recarregando energias para a semana, a turma de Henry e Júlia se divertia em um beco que dá para a Rua Direita. Sentados no chão, os 12 jovens cantavam acompanhados de um violão. Músicas do repertório de Raimundos, Charlie Brown Jr., O Rappa. Alguns fumavam e tomavam vinho barato ou uma mistura de cachaça com mel. De repente, uma senhora abriu uma janela sobre o grupo, em um sobrado contíguo ao beco. “Abaixa aí”, pediu. “Ainda não são dez horas. Aqui: faltam 45 minutos”, respondeu um jovem, apontando o próprio relógio. “Isso perturba”, reclamou a senhora. Ela ficou um tempo olhando o grupo, que continuou cantando em coro, e tornou a fechar a janela.

Com a ausência de casas noturnas, as festas promovidas no Centro Acadêmico da Escola de Minas (conhecido apenas pela sigla Caem), ao lado da Praça Tiradentes, costumam “bombar”. Os jovens de antigamente também frequentavam o local, famoso por seus bailes. As moças iam acompanhadas das mães e não ingeriam uma gota de bebida alcoólica. As caixas de som tocavam tango, bolero, samba-canção. E quem dançasse muito coladinho corria o risco de ser advertido por funcionários do lugar.

A dona de casa Mirtes de Oliveira, de 78, preferia os bailes do Clube XV de Novembro, no Bairro Antonio Dias, onde mora. “Eram mais animados. O pessoal era simples, mais humilde. No Caem, o pessoal era mais requintado, era para quem tinha dinheiro”, justifica. Na juventude de Mirtes, ainda sobrevivia, embora mais branda do que outrora, a rixa entre moradores do Bairro Antonio Dias, de um lado, e os do Pilar, de outro. No meio, a Praça Tiradentes, “zona neutra”. Os do Pilar, mais ricos, apelidados pelos rivais de “mocotós”, chamavam os outros de “jacubas”. Entre os dois lados havia “enorme disputa na realização das festas religiosas ou profanas. Cada qual se esmerava para superar o outro. Muitas vezes, essas disputas terminavam em brigas de fato”, escreve Ângela Leite Xavier em Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto. Mirtes acha tudo isso uma “bobagem”, mas sente saudade daquele tempo. “Hoje está um movimento horrível. Não tinha essa montoeira de gente que tem hoje.”


Olhares sobre a cidade

O zoólogo alemão Hermann Burmeister chegou ao Rio de Janeiro em 1850 e, no ano seguinte, foi a Minas Gerais, atraído principalmente pela fama de Lagoa Santa, cujas águas teriam poder curativo. No estado, também passou por outros municípios, como Mariana e Ouro Preto, aos quais dedicou um dos capítulos do livro Viagem ao Brasil, publicado em 1853. Ele observou que, em Ouro Preto, “tudo é vivo e animado”, apesar de a “vida intelectual” não oferecer “nada de interessante”.

Em 1938, ano em que a cidade foi tombada pelo Iphan, o pernambucano Manuel Bandeira a visitou e escreveu o curioso Guia de Ouro Preto. O talentoso viajante narra seus passeios a pé e de carro. Conta parte da história local, descreve monumentos com minúcias, lista as escolas e hotéis, indicando seus endereços. Amplamente documentada, a obra inclui até os horários de visitação das igrejas.

Guias por toda parte

A Praça Tiradentes é o quartel-general dos guias turísticos, mas eles atuam em várias partes da cidade. Willian de Jesus, de 37 anos, é um deles. Como muitos colegas, ele começou a trabalhar na área por acaso. Tinha 13 anos e estava guardando um carro na praça quando um homem pediu que o levasse até uma igreja. Fez cursos e, em 2009, registrou-se no Cadastro dos Prestadores de Serviços Turísticos (Cadastur), exigência do Ministério do Turismo. Em Ouro Preto, o cadastro da prefeitura tem 29 guias regularizados. Na cidade, também atuam profissionais filiados à Associação de Guias de Turismo de Ouro Preto (AGTOP). O tour mais barato, de até quatro horas de duração e para grupos de até 10 pessoas, custa R$ 108. O mais caro, que dura 15 horas e se destina a turmas de até 50 turistas, vale R$ 779. “Na praça, há pessoas que dão uma de guia, falam um monte de coisas para os turistas e cobram R$ 20, R$ 30. Isso desvaloriza a profissão”, queixa-se o presidente da AGTOP, Nelson Marcos da Silva.

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